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O Feminino da tradição afro-brasileira à cultura brasileira – estudo da figura da pombagira, suas imagens e imaginários mediáticos.

 

 

A cultura dominante baseia-se em um sistema social patriarcal, de matriz judaico-cristã e concepção dicotômica das relações entre os pólos, como bem e mal, feminino e masculino, forte e fraco, etc. Ademais, fortes relações de poder disseminadas no sistema social (FOUCAULT, 1979)obedecem alógicas de dominação que geram desigualdades e concepções de força e fraqueza também dicotômicas e desiguais. Noções como “equilíbrio”, “harmonia” e “serenidade” encontram pouco espaço nesse contexto, a não ser como formas de resistência e reação ao sistema, então percebido como “opressor” pelas partes ditas “fracas” (BEAUVOIR, 1949; FREIRE, 1970).

 

A noção de feminino não foge desse contexto e, nele, encontra-se determinada pelas relações de poder oriundas do sistema patriarcal. Em tempos de democratização de um mundo dito globalizado, chamam atenção os dados sobre a falta de igualdade entre homens e mulheres em todas as sociedades[1]. A presente proposta de pesquisa, porém,não visa denunciar nenhum tipo de desigualdade no tratamento às mulheres, e sim apreender o modo de comunicação do feminino–isto é, não só das mulheres, mas do princípio feminino presente em diversas manifestações ritualísticas e na vida cotidiana de homens e mulheres em comunidades de terreiro – no âmbito da tradição afrobrasileira e seu reflexo no imaginário popular do Brasil. Isso porque, no contexto cultural denominado ‘afrobrasileiro’, determinado por parâmetros culturais ao mesmo tempo híbridos e plurais(CANCLINI, 1997), acreditamos que concepções da realidade e das relações sociais que fujam ao padrão dominanteexistemno Brasil; concepções estas dotadas de um forte potencial de penetração e contaminação cultural que atribuímos ao poder de resistência das culturas ditas ‘das minorias’,‘locais’, ‘subalternas’ ou ainda ‘clandestinas’ (PAIVA, 2005; CASTELLS, 2008; SANTOS, 2005; MORIN, 1962) e que geram modos de comunicação próprios. O famoso processo de antropofagia cultural, cunhado pelos modernistas brasileiros, ou seja a ingestão, digestão, assimilação e defecação de elementos culturais vindos de fora parece-nos aqui pertinente e válido não só para os elementos das culturas do mundo dominante, mas também no caso da transformação dos elementos culturais de todas as outras partes do mundo que tiveram algum contato com o Brasil, predominantemente em nosso caso, elementos africanos e indígenas.

 

Destacamos aqui, baseando-nos em estudos anteriores (DRAVET, 2010), o poder de resistência e penetração no Brasil de um sistema de comunicação oral, que qualificamos de mítico, mágico e poético como forma de preservação dos saberes tradicionais de culturas historicamente oprimidas como a africana e a indígena, mas também a cultura dita popular.O ambiente do terreiro e suas adjacências na sociedade  (adjacência da casa, da rua, do bairro ou dos locais de realização de trabalhos tais como encruzilhadas, matas e parques, quintais de casas, etc.) sãolugares paradigmáticos desses modos de comunicação e funcionam como uma espécie de foco central de onde partem narrativas, cantos, orações, danças, ditados e expressões, comportamentos, gestos, modos de vestir, etc. que se disseminam naquilo que chamamos de cultura popular e ali se misturam com outras práticas (música, teatro, dança, linguagem, crenças, etc).

 

Dentro desta questão paradigmática da comunicação oral mítico-mágico-poética, com todas as suas implicações sobre o pensamento e a linguagem e sobre os comportamentos,uma das concepções que desconcertam o suposto consenso em torno das dicotomias estabelecidas pela sociedade dominante de caráter patriarcal é, justamente,a concepção das relações entre masculino e feminino. Nas religiões afrobrasileiras, essas duas forças são complementares, interdependentes e equilibradoras. Quando vividos nas relações humanas e sociais, os desequilíbrios entre as duas forças geram conflitos; o que leva à existência de um nível de vivência do sagrado em que as manifestações das forças masculinas e femininas se tornam objeto de vários discursos. Vejamos como isso se expressa nos dois polos da concepção afrobrasileira do feminino, o polo cósmico e o polo humano.

 

Na simbologia afrobrasileira, as Senhoras dos Pássaros, ou Grandes Mães, são a entidade máxima de representação da força feminina. Elas são representadas por uma grande cabaça formada de duas metades unidas, chamada Igbadu ou “a cabaça do universo”. (OXALÁ, 1998; SANTOS, 2001) A metade inferior - o receptáculo - representa o feminino, enquanto a metade superior representa o masculino. O que há dentro não deve ser revelado. As duas metades não podem ser separadas em hipótese alguma. Separá-las seria romper com a ordem do mistério.

 

Para entender a relação entre os três elementos da cabaça (metade inferiro, metade superior e totalidade reunida), é preciso voltar à origem da criação do universo de acordo com a cosmologia Yorubá transmitida pelos mitos e tratar da relação entre os três princípios fundamentais: a geração, a fecundação e o gerado ou, em outras palavras, a mãe, o pai e o filho ou, ainda, o vermelho, o branco e o negro. Marcelo Costa Nunes, em seu livro Oyè Orixá (2009), expôs em detalhes a importância desses três princípios na cosmologia da Umbanda e no conhecimento dos Orixás.

 

No símbolo de Igbadu, a cabaça, o princípio da geração pertence ao poder feminino, mas só se completa com o princípio da fecundação que é masculino. É necessário que as duas metades formem uma só cabaça para que o mistério da criação ocorra, para que surja o elemento gerado, o filho, cujo princípio se encontra encerrado e protegido dentro da cabaça. Sem ambos os princípios reunidos do masculino e do feminino não há criação possível. E o que é mais curioso é que, no símbolo cosmogônico, não pode haver nenhuma supremacia de uma força sobre a outra: equilíbrio, harmonia, adequação, correspondência, união são os modos do encontro necessário entre os princípios da geração e da fecundação, entre a terra e a água, o fogo e o ar, a terra-fogo e a água-ar, sendo o primeiro par feminino e o segundo masculino, respectivamente, gerador e fecundador. No entanto, tanto os mitos como a História são repletos de narrações de luta de supremacia entre o poder dos homens e o das mulheres. Incessantemente um tem dominado o outro. Chegamos aqui no polo humano da concepção do feminino que se distingue do polo cosmológico, como dito acima.

 

Na mitologia Yorubá, antes dos homens dominarem as mulheres, eram as mulheres que dominavam os homens, que os humilhavam, zombavam deles e determinavam a ordem social do culto. Várias sociedades de mulheres ocupam o imaginário relativo a um tempo mítico, a-histórico, em que elas detinham o poder. E, de fato, há relatos de sociedades femininas, inclusive de guerreiras em todos os lugares do planeta. Na história Yorubá, contam que houve duas sociedades secretas de mulheres poderosíssimas: a sociedade Elekô, conduzida por Obá e a Sociedade Geledê associada ao culto das grandes mães, Senhoras dos pássaros. Do lado indígena, sabemos que as Amazonas aterrorizaram os primeiros colonos que por estas terras brasileiras se aventuraram.

 

É por essa aparente contradição entre o equilíbrio necessário entre os dois poderes de um lado e o desequilíbrio manifesto nas lutas constantes entre o masculino e o feminino por outro, que compreendemos que o oculto no mito das Senhoras dos Pássaros tem como função a garantia do equilíbrio entre as forças no nível cósmico. De acordo com os relatos dos Iniciados[2], o conhecimento do mito e o cumprimento da ritualística decorrente têm o poder de dar a certeza ao Iniciado de que o cosmos encontra de fato o equilíbrio e a ordem necessários – no caso, a união entre feminino e masculino – e de que, por isso mesmo, o Iniciado pode também buscar essa ordem dentro de si. No saber mitológico, há sempre uma correspondência direta entre o que se passa no nível cósmico e o que se passa dentro do homem. O mistério em torno das Senhoras dos Pássaros parece indicar, portanto, que são elas as responsáveis por preservar a possibilidade dessa união. O fato delas se esconderem garantiria então a manutenção de um conhecimento que só o segredo pode assegurar. Paradoxalmente, é no oculto e no silêncio que o conhecimento do fundamento é preservado.

 

No âmbitoda vivência humana do sagrado, nem tudo pode ser silenciado e ocultado. Para auxiliar na busca do equilíbrio nas relações entre feminino e masculino, tanto nas relações sociais do indivíduo, como em sua vivência interior ou sua psiqué, uma figura surge como imprescindível:a pombagira.A Umbanda – diferente do Candomblé –  se caracteriza pela presença de entidades que estabelecem um elo de comunicação entre deuses e homens; são os chamados guias que no caso da força feminina são denominados pombagiras. Em suas pesquisas, Birman (1991) explicou bem como se concebe a possessão dessas entidades na Umbanda:

 

As entidades de umbanda são construídas como seres em contigüidade com o mundo humano -seres que já viveram, portanto. Com efeito, a elaboração ritual da possessão umbandista deixa entrever que o sobrenatural é percebido como uma instância que traz duplicadas as relações que conhecemos no mundo terreno. A possessão considerada umbandista se realiza de forma a construir ritualmente os personagens que 'descem' nos terreiros, de modo que estes se tomam verossímeis por apresentarem traços semelhantes aos das pessoasvivas. (1991, p.43)

 

No Brasil, há pouca literatura sobre as pombagiras; no entanto, uma pesquisa de campo junto a pessoas não adeptas revela que a figura é muito presente no imaginário coletivo. Não há quem nunca tenha ouvido falar nela e quem não saiba alguma coisa a seu respeito. Geralmente, a menção à pombagira suscita reações de espanto nas pessoas, que podem se expressar através do riso e do deboche ou ao contrário de respostas monossilábicas ou do silêncio incomodado. O nome é imediatamente associado à imagem de uma prostituta, uma mulher de vida livre, sedutora e perigosa. A rigor, toda mulher tem uma moça , alguns homens femininos também a têm. Ela é uma espécie de companheira que garante a feminilidade.

 

Muitos relatam que a pombagira é capaz de influenciar homens e mulheres em suas atitudes. Enquanto alguns temem a pombagira, a chamam de perigosa, influente, maldosa, capaz de feitiços e amarrações, outros se sentem fascinados pelo seu poder de sedução, pelo seu conhecimento de feitiçaria que lhe permite obter qualquer coisa em matéria de amor e relacionamentos. A história da vinculação, no imaginário brasileiro, entre a pombagira e a prostituta começou a ser investigada em perspectivas históricas e sociológicas (AUGRAS, 1989; BARROS, 2010; CONTINS, 1983 e 1985; CRUZ, 1987) porém, ainda merece mais desenvolvimentos e aprofundamentos do ponto de vista antropológico e comunicacional, ou seja, a partir de um metaponto de vista que possa abranger todos os tipos de conhecimentos acima citados: histórico, sociológico, antropológico mas também, como veremos na metodologia, poético, estético, sensível. Segundo Augras (1989), a pombagira é pura criação brasileira:

 

A Umbanda parece ter promovido, em torno da figura de Iemanjá, um esvaziamento quase total do conteúdo sexual. Tal sublimação (ourepressão?) deu ensejo ao surgimento de nova entidade, pura criação brasileira, a Pomba Gira, síntese dos aspectos mais escandalosos que pode expressar a livre expressão da sexualidade feminina, aos olhos de uma sociedade ainda dominada por valores patriarcais (1989; 15).

 

Nos terreiros de Umbanda, tanto homens como mulheres incorporam a pombagira em rituais de possessão, o que significa que sua força está além da diferenciação de gêneros. Ao falarmos da pombagira, estamos, portanto, falando do feminino e não das mulheres. Um feminino que, na cosmogonia afrobrasileira, é percebido como um tipo de força emotiva e intuitiva, instintiva e vinculada ao selvagem cujas características se desdobram em poder de geração, poder guerreiro, poder de sedução e poder de feitiçaria. Os mesmos poderes presentes nos Orixás femininos (Nanã, Yewá, Yemanjá, Oxum, Yansã e Obá) e ocultos na noite (as Grandes Mães), preservados pelo segredo, calados pela dominação masculina; e que, por isso mesmo, quando aparecem à luz do dia, incomodam. O próprio termo pombagira carrega consigo a história desse incômodo através de assonâncias e deslocamentos semânticos e:

 

"Não parece haver dúvidas que o nome de PombaGira resulta de um processo de dissimulação, que primeiro transforma Bombonjira em Bombagira, depois, em PombaGira, recuperando assim palavras que possam fazer sentido em português. Pois a “gira”, palavra de origem bantu (njila/njira, “rumo, caminho” segundo Castro, 1938, p. 100) remetida ao português girar, é, como sabemos, a roda ritual da umbanda. E “pomba”, por sua vez, além de ave, designa também órgãos genitais, masculino no Nordeste e feminino no sul. Até no nome aparecem a ambigüidade e a referência sexual. (AUGRAS, 1989, pp. 25-26).

 

É ncessário dizer também que a pombagira não é uma figura isolada que circula no mundo profano e sim a manifestação de um tipo de força considerada sagrada[3], parte de um sistema de relações coordenadas entre o transcendente e o social. Se isolamos a pombagira do seu sistema, ela se transforma em clichê social: a prostituta, a histérica, a bruxa. Se a mantemos em seu sistema, ela se faz portadora de todas as forças do feminino que nascem das origens com Nanã, a auto-gerada, que se manifestam nas belezas de Yansã e Oxum, no amor espiritual de Yemanjá, na força de transformação de Yewá, etc. Obviamente, quando a figura sai de seu sistema cosmogônico complexo, ela passa a circular pelo mundo profano e se transforma num clichê. Resta entender por que esse clichê adquire formas especificamente negativas do ponto de vista cultural e social.

 

Para isso, é necessário considerar que a vivência da pombagira pelos adeptos de Umbanda se dá através da incorporação e diz respeito aos aspectos emocionais da vida dos homens e das mulheres do terreiro: seus sentimentos, suas relações amorosas, sua sexualidade, sua expressividade corporal e verbal. Alguns homens não gostam da incorporação da pombagira porque ela os remete a seu lado feminino que tendem a negar. Já outros relatam que amam ter a oportunidade de exteriorizar seu lado feminino, sorrir, falar, gargalhar e gesticular “como mulher”. De fato, a pombagira gargalha, canta, xinga, usa vocabulário xulo, às vezes vulgar, quebra todas as barreiras, os tabus, expressa aquilo que não se ousa expressar, dança e gira para tirar o corpo da imobilidade, incita ao movimento e à ação. Nesse sentido, ela pode ser considerada como um tipo dionisíaco do feminino. Gosta de zombar, debochar, rir de tudo aquilo que as civilidades impõem como limitação aos homens e às mulheres. Sendo assim, seu campo preferido de atuação é o dos relacionamentos amorosos e, mais especialmente, o da sexualidade dos homens e das mulheres. Reginaldo Prandi (1996) fala, por isso, que as religiões afrobrasileiras, e notadamente a Umbanda, são alvos de preconceito ao mesmo tempo em que fascinam por vários motivos históricos, mas também por revelarem “as faces inconfessas do Brasil”.

 

Com Pombagira no plano de ritual que é desenvolvido para se atuar no governo do cotidiano, assegura-se o acesso às dimensões mais próximas do mundo da natureza, dos instintos, aspirações e desejos inconfessos, o que estou chamando aqui de as faces inconfessas do Brasil. O culto de Pombagira revela, de modo muito explícito esse lado ‘menos nobre’ da concepção popular de mundo e de agir no mundo entre nós, o que é muito negador dos estereótipos de brasileiro cordial bonzinho, solidário e pacato. (PRANDI, 1996, p.159)

 

A pombagira atua, portanto, nas regiões da vida social onde residem os maiores tabus: o amor e a sexualidade. Voltamos ao início da nossa explanação descritiva: o oculto. O que é um tabu senão algo que se oculta? Talvez seja possível afirmar que os clichês simplificadores que fazem da pombagira uma figura negativa associada à prostituta, à mulher histérica e à bruxa perigosa são as máscaras sob as quais o feminino ama ocultar-se para melhor preservar o seu poder criativo, intuitivo, amoroso? Se ela gosta de rir e de jogar, faz pouco caso das civilidades e prefere a liberdade, se ela é movimento e ação, não surpreende que a pombagira jogue e ria com aquilo que mais desestabiliza o homem: sua sexualidade; e com aquilo que talvez seja o maior desafio ao mesmo tempo espiritual e material do homem: o amor. Mas tem mais, o tabu que oculta a realidade nos parece ter sua origem também em outro lugar do social: na rejeição do abjeto. Em Pouvoirs de L’horreur – Essai sur l’Abjection (1980), Kristeva diz que não nos livramos jamais totalmente da sujeira. Ela sempre volta mais cedo ou mais tarde como em um ciclo em movimento que vai da rejeição e exclusão no domínio do oculto, passando por diversas formas de resistência e sobrevivência, voltando inevitavelmente, dotada agora de uma força vital recrudescente. Isso se verifica para os dejetos naturais, que se recompõem como húmus ao solo, se verifica com os dejetos industriais de que buscamos nos desfazer, e se estende para a sujeira social: as prostitutas fazem parte daquilo que Julia Kristeva chama de lixo social. O Brasil colonial, segundo Souza (1993) é visto como território da abjeção: território do Índio, do selvagem antropófago, do negro escravo indesejável e de todos os banidos do reinado de Portugal e Castela condenados ao degredo nesta terra infernal (SOUZA, 1993). Para compreender melhor a pombagira, veremos que, desde as origens da constituição da cultura brasileira, uma cisão se estabelece entre a “boa sociedade” e seu discurso moral (a elite portuguesa estabelecida na colônia) por um lado, e o universo efervescente dos rejeitados e dos excluídos da sociedade, por outro lado. Souza fala de Inferno atlântico, em referência a esse período.

 

Após essa breve explanação sobre os dois pólos de manifestação do feminino nas religiões afrobrasileiras e na cultura brasileira, podemos considerar que, dos mitos à vivência, coordenações de coordenações (MATURANA, 1998)interligam homens e mulheres entre si dentro e fora da comunidade em que vivem, e com o universo masculino, formando um enredo do feminino que pode ser narrado. Da comunicação transcendental vivenciada no terreiro à comunicação social dos participantes, dentro e fora da comunidade, todas as relações são coordenadas entre si. Mas a vida biológica e física é tão complexa, indo incessantemente do caos à ordem e da ordem ao caos, que o espírito e as ideias (noosfera) cumprem um forte papel de coordenação das relações coordenadas. Isso significa supor que há vários níveis de coordenação das relações do feminino com o mundo, apreensíveis no universo das comunidades de terreiro: o nível transcendente, de caráter poético, que buscaremos apreender por um lado através dos mitos e da liturgia, o nível social, de caráter mais pragmático, cujo sistema é decorrente do primeiro e pode ser apreendido pela observação etnográfica. Mas há também um terceiro nível, indiretamente ligado ao que se passa dentro dos terreiros, o da representação e dos discursos veiculados fora do universo religioso, em um sentido profano e dessacralizado, que podemos apreender através do estudo das imagens do feminino na cultura, e especialmente, na produção cultural mediática. Segundo Prandi (1996):

 

Não é raro o envolvimento da pombagira em casos de polícia e seu aparecimento em reportagens, novelas e séries de televisão. (...) Mas fica bem claro que, ainda que a pombagira seja uma entidade espiritual de baixo nível hierárquico, de religiões de baixo prestígio social, sua presença no imaginário extravasa os limites dos seus seguidores para se fazer representar no pensamento das mais diversas classes sociais do país. (p.139-164)

 

Tal percepção nos conduz a querer relacionar nesta pesquisa as produções imaginárias transcendentais e sociais dentro do terreiro àquelas que se formam fora desse ambiente e que se encontrarão melhor representadas nos discursos mediáticos. Faremos, para tanto, um levantamento de como a figura da pombagira é representada na produção ficcional e mediática brasileira e tentaremos interpretar as condições da tranformação da figura da pombagira, desde sua função como entidade sagrada até sua função dessacralizada de prostituta ou ‘companheira das prostitutas’. Inicialmente, duas figuras míticas e amplamente exploradas pela mídia brasileira nos parecem interessantes formas de abordar essa passagem das crenças e práticas religiosas afrobrasileiras à recriação mediática: são elas Carmen, personagem principal da telenovela brasileira homônima de 1987, exibida pela extinta Rede Manchete, escrita por Glória Perez e dirigida por José Wilker e Luiz Fernando Carvalho; e Madame Satã, personagem real fonte do filme de ficção documental homônimo, de Karim Ainouz, de 2002. Madame Satã é o cognome de João Francisco dos Santos Sant´Anna, transformista brasileiro, visto como personagem emblemático da vida noturna e marginal carioca na primeira metade do século XX. Considerado exímio capoeirista, lutou por diversas vezes contra mais de um policial, geralmente em resposta a insultos que tivessem como alvo mendigos, prostitutas, travestis e negros. Quando assume seu papel de dançarina da noite, o malandro se transforma em uma belíssima “dama da noite”. A análise dessas duas figuras e de outras que eventualmente pesquisaremos, é fundamental para estabelecer relações entre os diversos imaginários: o das religiões afrobrasileiras e o popular e a forma como eles se mesclam com as representações e discursos estabelecidos pelos paradigmas culturais dominantes, para recriar-se nos discursos mediáticos e adquirir contornos estereotipados. Com essa Terceira etapa, acreditamos poder reconstruir os vários trajetos do feminino na sociedade e na cultura brasileira.

 

***

 

[1]De acordo com o relatório da UNICEF, 2007, sobre a situação das crianças no mundo, para que a situação da infância melhore e que haja um desenvolvimento sustentável do planeta, é preciso lutar pela igualdade entre homens e mulheres. O relatório constata: “A discriminação sexista é onipresente. Embora os graus e as formas de desigualdade variem, em todas as regiões do mundo, as mulheres e as meninas não beneficiam de um acesso igual aos recursos, às possibilidades de ação e ao poder político. A opressão das meninas e das mulheres pode se manifestar pela preferência dada aos filhos mais que às filhas, pelas escolhas pessoais e profissionais restritas impostas às meninas e mulheres, pela privação dos direitos fundamentais e por atos de violência sexista caracterizada.” (UNICEF, 2007, p.7, tradução nossa). Um pouco adiante na argumentação, a atenção se volta ao Brasil dentro desse contexto geral de discriminação da mulher e observa: “No Brasil, 20% apenas das pessoas entrevistadas, homens e mulheres, consideram que a sociedade trata os dois sexos em pé de igualdade, enquanto mais da metade das pessoas entrevistadas nesse país e entre os argentinos vizinhos estimam que não há igualdade de oportunidade de emprego entre homens e mulheres. Esses dados são extraídos de uma amostra pequena, mas podem assinalar uma maior tomada de consciência quanto à discriminação fundada no sexo nessas sociedades.” (Idem, p.8, tradução nossa).

 

[2]Pesquisa de campo em terreiros de Brasília iniciada pela responsável por este projeto em 2011.

 

[3]Segundo Nickie Roberts (1992)a Prostituição tem origem no culto pré-histórico à deusa Instar, quando numa sociedade matrifocal, em que as mulheres representavam a força geradora da vida, eram a própria encarnação da divindade. Através de rituais sexuais – bacanais – as mulheres eram o elo de ligação entre o homem, a comunidade e a deusa. Com o advento das sociedades masculinas, em torno de 3000 a.C., tribos guerreiras nômades começaram a invadir as sociedades matrifocais, subjugando-as e sujeitando-as ao poder masculino. É neste contexto que surgem as primeiras civilizações na mesopotâmia. Com a afirmação do poder masculino, sacerdotes e deuses homens foram instituídos e o culto à deusa, que agora era confinado a templos, foi, ao longo do tempo, suprimido. Segundo a autora, a Prostituição sagrada constituiu-se na resistência da tradição dos rituais sexuais, desde a idade média para tornar-se “parte integral da adoração religiosa nas primeirascivilizações do mundo”. É nesse período, em torno do segundo milênio a.C. que a Prostituição sagrada se torna visível e tem os seus primeiros registros na escrita. (1998, pp. 19-30)

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